Mais direto que isto impossível. Sim, depois de vários anos sofrendo de uma doença incurável e tendo a exata noção do que estava acontecendo com seu corpo, ele morreu do jeito que ele achou que ia; ou melhor do jeito que ele tinha certeza que ia.
Não sei o que é pior a doença ou a consciência total e completa do dano que ela está provocando em você. Meu pai morreu lúcido, como sempre foi. Morreu estóico, introspectando-se de tudo que aquela experiência sem sentido tinha a oferecer. Morreu chato e cri-cri, como sempre foi.
Ele era chato. E isto, por incrível que pareça, para ele era uma qualidade. Foi sua chatice e sua persistência que o fizeram chegar onde chegou tendo nascido em uma família pobre no Ipiranga. A chatice faz parte do perfil dos vencedores, pois ninguém entende os motivos que levam um chato a ser chato. Meu pai era chato porque ele tinha um objetivo na vida, tinha um motivo, uma razão, tinha um vetor que o fazia andar para frente independente das condições do clima, da política e das pessoas em volta. Ele queria sair do estado em que estava, da pobreza de dinheiro, da incapacidade de ter o que ele queria ter e do reconhecimento que precisava para justificar todo seu esforço.
Sem sombra de dúvida ele conseguiu o que se propôs. Morreu como um cara íntegro, reconhecido em seu meio como um dos melhores e teve todo o dinheiro que quis. Foi funcionário público quando precisou, foi pai, marido e empresário quando deram a chance, foi enganado, porque confiava no ser humano, e se reergueu algumas vezes. Sua história de vida, se contada em detalhes, daria um livro. A de muitas pessoas daria um livro, é normal dar-se-á valor aqueles que já foram. Mas meu pai viveu de fato uma grande vida de superação, persistência e força de caráter.
Tínhamos muitas diferenças. Quase não conseguíamos conversar, pois na grande maioria dos assuntos divergíamos de forma visceral. Nossas diferenças entretanto sempre foram tratadas com respeito. O respeito de quem é inteligente e sabe que os conflitos é que fazem as pessoas crescerem. A diferença, quando bem trabalhada, nos fazia a ambos pensarmos na própria vida. E por este lado, minha relação com meu pai foi de uma riqueza ímpar. As questões, mesmo as mais difíceis, eram sempre debatidas, combatidas e discorridas. Não vou dizer que sempre chegávamos a um consenso pois seria mentira. Como diria Margareth Thatcher, “o verdeiro líder é aquele que cria o consenso e não aquele que busca um”; e na nossa relação não havia líderes. ficamos várias vezes sem o consenso. E tudo bem !
Nem eu, na minha arrogância e eterna soberba conseguia dragá-lo para dentro das minha idéias sobre o mundo. Sua visão podia ser discutida, e ele a fazia sempre que questionado. Sabia das suas limitações quanto ao entendimento do valor dos bens materiais. Nada mais justo para alguém que durante mais de 40 anos tinha como trabalho diário salvar pessoas que estavam morrendo. Sim, morrendo, pois isto é que UTI faz. Ninguém com resfriado ia falar com ele. Ninguém com dor no dedo ia falar com ele. Só os piores, os sem cura, os desacreditados. Alguns ele salvava, outros não conseguia. E esta foi sua sua história. O aprendizado do possível. Do que dava para ser feito e das limitações do corpo. E o que eu sabia disto ? E ele nunca forçou que eu o entendesse.
Claro que tínhamos divergências. Eu nasci sem este chip. Meu entendimento sobre seus motivos e seu desprendimento era tão raso quanto uma poça de água depois de uma garoa fina. Depois que fiquei mais velho resolvi que isto não seria mais um problema e por isto, nos últimos anos, o que pude absorver dele tentei.
Mas estes últimos anos foram seus piores. Por mais que tentasse suas forças foram sendo drenadas por um corpo seco e doente. O que mais me recinto disto tudo não foi sua morte. Acho que também não vim com este chip. Prefiro me aceitar como sou e pronto. Sou assim como sou e não sofri pela morte do meu pai. É isto.
Sofri pelo que fizeram dele ao longo dos últimos anos. E isto me deixou muito triste por muito tempo. Meu pai virou um rato de laboratório. Uma cobaia de médicos mais preocupados com seus próprios nomes e egos, e de hospitais que viraram bancos cujo recurso corrente são as pessoas em seus leitos. Meu pai virou um passivo contábil para uma seguradora que nem admitia que o coitado estava doente e sofrendo.
A única coisa que sua médica falava é que não o deixaria morrer, pois nenhum médico poderia fazer isto. Na minha cabeça eu pensava, “dane-se que ele está sofrendo, dane-se que sua força, seu caráter e sua história de vida estão virando história de corredor de hospital. O que importa é que ela, como médica, tinha feito um juramento para um tal de hipócrates e por isto, meu pai não podia simplesmente ir” .
A morte era uma tragédia afinal, o hospital ia ficar sem receber e os médicos, com a morte dos doentes, iam ter que se explicar, iam ter que dizer que de fato, não tem a menor idéia do que estão fazendo. como de fato não tem.
É um teatro de marionetes onde meu pai foi o ator principal, indo para lá e para cá, dançando quando o remédio era bom, sonhando quando davam uma notícia alegre e ficando deprimido quando sua consciência mostrava-lhe a realidade.
Eu me recinto de não terem deixado meu pai ir em paz. Sem que fosse furado, cortado, anestesiado, sedado, imobilizado por um bando de gente que o conheciam por um número no prontuário.
Meu pai morreu há alguns anos. Meu pai morreu quando teve que ser internado 137 vezes no hospital, quando parou de andar e quando pela falta de oxigênio não conseguia mais ler. Meu pai morreu em vida e os médicos cuidavam só do que nunca interessou para ele, do seu corpo. Nem isto conseguiram entender.
Sua alma foi embora há alguns anos. E eu estava lá. Enquanto ele estava são, em casa, lendo, trabalhando, falando, ouvindo e participando eu estava lá. O que morreu semana passada não foi meu pai. Foi só um pedaço de carne.
Meu pai continua. Continua em mim, nos meus filhos e nos milhares de exemplos que tenho dele na memória. Meu pai continua nas frases que sei e repito por causa dele, nos livros e nas histórias da mitologia graga que leio por causa dele, por causa tanto das nossas diferenças quanto das nossas semelhanças – que eram muitas.
Se nos tornamos o que não queremos ser, nunca estarei tão próximo do meu pai quanto daqui para frente, porque de todos os embates e diferenças que tivemos, os que mais me marcaram foram aqueles que ele não fazia questão que eu aprendesse na hora. Dizia para eu ter calma, que na hora certa eu ia ver. E eu os estou vendo, um a um.
E nenhum ritual bobo, que só serve para dar satisfação social para um monte de gente que nunca conviveu com ele ou comigo vai tirar isto de mim. A minha resiliência em participar destes ritos é justamente porque não sinto nada. Tem horas que simplesmente não vale ser hipócrita somente para ser aceito. Para mim, esta é uma delas.
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